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Mulheres que Correm com os Lobos


Do Conto: Os Sapatinhos Vermelho

(...) Essa explosiva "ocultação" psicológica ocorre quando a mulher reprime grande parte do self, empurrando-o para locais sombrios na psique. Segundo a psicologia analítica, a repressão de sentimentos, instintos e impulsos tanto negativos quanto positivos, forçando-os para o fundo do inconsciente, faz com que eles ocupem o reino da sombra. Embora o ego e superego continuem tentando censurar os impulsos da sombra, a própria pressão causada por essa repressão se assemelha muito a uma bolha na lateral de um pneu. Com o tempo, à medida que o pneu gira e se aquece, a pressão por trás da bolha aumenta e provoca uma explosão, que libera todo o ar do seu interior. A sombra age de modo semelhante. É por isso que uma pessoa extremamente sovina pode surpreender a todos contribuindo de repente com milhões de dólares para um orfanato. Ou é por isso que uma pessoa normalmente simpática é capaz de ter um ataque e agir momentaneamente como um rojão enlouquecido. Concluímos que, quando se abre um pouco a porta para o reino da sombra e se permite que vários elementos saiam, aos poucos, para que nos relacionemos com eles, que descubramos uso para eles, que negociemos com eles, podemos reduzir a chance de sermos surpreendidas por ataques e explosões inesperadas dali provenientes. Embora os valores possam mudar de uma cultura para a outra, colocando, assim, "negativos" e "positivos" diferentes no reino das sombras, impulsos típicos que são considerados negativos e, portanto, relegados às trevas são aqueles que estimulam a pessoa a roubar, a enganar, a assassinar, a agir com excesso de diversas maneiras, e assim por diante nessa mesma linha. Os aspectos negativos da sombra costumam ser estranhamente interessantes e, ainda assim, de natureza entrópica, .roubando o equilíbrio e a serenidade na disposição e na vida de indivíduos, relacionamentos e grupos maiores. A sombra pode, porém, conter aspectos divinos, exuberantes, belos e poderosos da individualidade. Para as mulheres, especialmente, o mundo sombrio quase sempre contém modos refinados de ser que são proibidos na sua cultura ou que nela recebem pouco apoio. No fundo do poço da psique de muitas mulheres está a criadora visionária, a astuta reveladora da verdade, a vidente, a que pode falar bem de si mesma sem se censurar, que pode se encarar sem repulsa, que se esforça para aperfeiçoar seu talento. Os impulsos positivos ocultos nas sombras da nossa cultura na maioria das vezes estão relacionados à permissão para que a mulher crie uma vida própria, feita à mão. Esses aspectos rejeitados, desvalorizados e "inaceitáveis" da alma e do self não ficam simplesmente ali parados nas trevas, mas conspiram para decidir quando e como farão uma tentativa para alcançar a liberdade. Eles borbulham ali no inconsciente, em fervilhante ebulição, até que um dia, não importa se a tampa que os cobre esteja bem fechada ou não, explodem em todas as direções num caudal descontrolado e com vontade própria. Nessas circunstâncias, como dizem no interior, é como tentar pôr dez quilos de lama num saco de cinco quilos. O que irrompeu das trevas é difícil de ser controlado depois da explosão. Embora tivesse sido muito melhor ter descoberto um meio de vivenciar a alegria proporcionada pelo espírito criativo de modo pleno e consciente, do que tê-la enterrado, às vezes a mulher fica contra a parede, e é esse o resultado. A vida sombria ocorre quando escritoras, pintoras, bailarinas, mães, cientistas, místicas, estudantes ou artífices param de escrever, de pintar, de dançar, de cuidar dos filhos, de pesquisar, observar, aprender, praticar. Elas podem parar porque aquilo a que dedicaram tanto tempo não saiu como esperavam, não obteve o reconhecimento merecido ou por inúmeras outras razões. Quando quem cria pára pelo motivo que seja, a energia que chega naturalmente a ela é desviada para o mundo oculto, a partir do qual ela vem à tona quando e onde consegue. Como a mulher percebe que não pode se dedicar abertamente àquilo que deseja, ela começa a levar uma estranha vida dupla, simulando um comportamento à luz do dia, agindo de outro modo quando tem a oportunidade.


Mulheres que Correm com os Lobos, de Clarissa Pinkola Estes, Editora Marcador

Quando a mulher começa a arrumar


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